17 de setembro de 2007

Loteria da vida

_____O narrador do conto “A loteria em Babilônia”*, de Jorge Luis Borges, começa a narrativa dizendo que, “Como todos os homens de Babilônia, [ele foi]... procônsul; como todos, escravo” (p. 65)**. O que causou tal mobilidade social, uma mudança tão grande na vida do narrador e de todos em Babilônia foi o acaso. Só que o acaso no país está multiplicado muitas vezes, sua força é muito maior do que habitualmente. A instituição que aumenta exponencialmente a força do acaso é a loteria, organizada, no conto borgeano, pela Companhia.

_____A força da loteria em Babilônia foi aumentando aos poucos. Para atrair público, de simples prêmios com elementos pecuniários ela passou, também, a distribuir, para os menos afortunados, multas e, depois, castigos e, mais tarde, começou a regular os acontecimentos da vida de todos: as tarefas que teriam de fazer, em quem mandariam, quem obedeceriam, se seriam mutilados ou realizados nos seus mais íntimos desejos. Influía, realmente, na vida de todos, pois, com o aumento do poder da loteria, ela se tornou “secreta, gratuita e geral” e aboliu “a venda mercenária de sortes” (p. 68).

_____Publicado em 1941, início da II Guerra Mundial (1939-45), o conto “A loteria em Babilônia” pode ter simbolizado toda a incerteza do momento, as incertezas dos anos que se seguiram desde o fim da I Guerra Mundial (1914-18), um mundo que viu países desaparecerem, regimes atípicos surgirem, costumes mudarem, crises econômicas que alteraram drasticamente a vida muitos por quase todo o planeta. Mudanças rápidas atingiram em alguns anos muitas sociedades, alterando, às vezes, a vida de ricos e pobres, parecendo, se vistas com olhos ingênuos, mera obra do acaso.

_____Uma das principais características da loteria babilônica é a ilusão de igualdade. Qualquer um pode ter sua vida extremamente modificada da noite para o dia. “Num aposento de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico.” (p. 65). O problema é que não há escapatória, não há escolha. O mundo, durante o Período entre Guerras (1918-39), experimentou sensações bem parecidas: esperança no desalento; receio na bonança.

_____No fim do conto o narrador explica que os costumes do seu povo estão saturados de acaso – “eu próprio, nesta apressada exposição, falseei certo esplendor, certa atrocidade” (p. 71) – e mostra que talvez a reguladora da loteria, a Companhia, talvez nunca tenha existido e que o acaso seja mesmo mero acaso... Tudo o que estava acontecendo no mundo entre as duas Guerras Mundiais, poderia não ser nada, só uma situação mal interpretada, simples acaso, impressão de olhos ingênuos... ou não.

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_____Publiquei este ensaio pois o professor Idelber Avelar está dirigindo um curso de pós-graduação, sobre Borges, em Tulane e convidou quem quisesse participar virtualmente das discussões a publicar nesta segunda-feira uma reflexão sobre o conto “A loteria em Babilônia” (indicação do Alex). Espero que este trabalho tenha sido válido.

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* Recomendo, fortemente, a leitura do conto antes de se travar contato com este ensaio. Todo o livro Ficções pode ser adquirido, gratuitamente, neste link (em espanhol) ou comprado neste (em português).

** A edição do conto utilizada neste ensaio faz parte do livro Ficções (Jorge Luis Borges), da Editora Globo (São Paulo, 1999). As páginas das citações se referem a essa edição, que tem seu texto traduzido por Carlos Nejar.

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